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#day41 – As Rotinas Diárias

Os dias eram sempre os mesmos. Ou não… Durante os dias de maior frio fazíamos turnos de 2h para descansarmos 4. Nos restantes, fazíamos de 3h e 6 de descanso. Eu já estava autónoma. Por algum milagre, já sabia afinar as velas, tinha noção dos ventos e quando olhava para o mar já entendia o que ele me dizia. Sabem? O mar tem uma linguagem própria, ondulante, impressionante. Parece que respira, que se faz vivo, que se apresenta como um todo. Parece um qualquer indivíduo cheio de tudo, principalmente de personalidade. Eu estava profundamente ouvinte, e ele foi-me ensinando. Passo a passo, a estar com ele. É muito diferente estar na costa ou no meio do mar. A sensação de respeito é constante. Não tenho como explicar, mas durante toda a viagem, nunca tive medo de estar ali perdida no meio daquela vastidão. Afinal de contas, fui convidada. Não fui fazer tal viagem por capricho ou mera vontade egoística de superação. Fui porque me senti chamada. Consiga eu explicar o que é isso em palavras 🙂

Tinha muito tempo para ler, estar e divagar. Tinha muito tempo e espaço para tudo na verdade. Quantas vezes na vida podemos estar tão disponíveis assim? Quantas vezes a vida se nos apresenta de forma vazia e com tanto potencial de criação. Não fosse o meu computador ter pifado no 5º dia de viagem, teria eu escrito um livro técnico no caminho :p Mas pifou. Obrigou-me a dias de contemplação. A SER em vez de FAZER. Obrigou-me a verdadeiramente parar e aproveitar o espaço, vazio e solidão. Isto porque o cansaço era tanto e sendo apenas 3 no barco, tínhamos que aproveitar o tempo livre para descansar ao máximo, não nos fosse calhar uma vigia complicada.

Todos os dias cozinhávamos pelo menos uma refeição quente. Normalmente o jantar para nos aquecer durante a noite. A cozinha não é como as normais. Cozinhar numa embarcação em caminho, é por si só uma experiência. A cebola que insistentemente salta da faca e da mesa, o balanço imprevisto que nos trás mais uma nódoa negra, os armários que podem despejar os seu pertences quando temos  a ousadia de os abrir. Tudo é infinitamente mais complexo no mar. Mesmo assim, o barco era muito confortável. Era na verdade um barco de luxo (http://www.jeanneau.com/boats/Jeanneau-64.html). Tínhamos muito conforto, cada um a sua cabine, mas mesmo assim a maior parte dos dias são difíceis. Muito difíceis. Principalmente para quem não é velejador como eu, a fazer esta travessia no inverno e com mar revolto 6 em cada 10 dias de viagem. Mas sei hoje que a atitude é o mais importante. Não interessa só a experiência, o background e as competências. A atitude, é o que no fim define uma experiência bem sucedida ou não. Muito mais do que um CV recheado de canudos ou eventos. É a atitude  e provalmente a paixão que trás a profundidade no que se está a fazer. E com essa profundidade vem a aprendizagem.

Por exemplo, os banhos são difíceis. O mar tem que o permitir. Não dá para “tomar um banho antes de ir para a cama” depois de termos levado com 3h horas de mar revolto literamente na cara, muitas vezes nem dá para mudar de roupa. É perigoso estar nos cubículos das casas de banho com o barco num mar em fúria. É preciso aguardar por um dia calmo e de preferencia tomar banho no deque de alguma salgada e mangueira. A água doce é escassa. É preciso aprender a respeitar os timings que não são nossos e deixar de nos agarrarmos à nossas próprias necessidades. Afinal de contas, se não formos verdadeiramente uma crew no mar, podemos mesmo estar a colocar todos em risco. Aprender a ter a atitude correcta de agradecer por um banho a cada 5 dias, é algo que ainda trago comigo. Não a prioricidade do banho, mas sim a prioricidade dos momentos de gratidão 🙂 Experiências assim constroem-nos o carácter. Dão-nos novas perspectivas e levam-nos pelo caminho que temos que percorrer para chegarmos onde temos que chegar e onde provavelmente nos esperam.

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