O catamaran era confortável. Tinha sido uma solicitação de entrega de última hora. O Jeanneau 64 estava 15 dias atrasado e nos entretantos tinha surgido a oportunidade de entregar este Helia 44 de La Rochelle a Southampton. Já estávamos em Les Sables há alguns dias em standby pelo que sair para outra missão enquanto aguardávamos pela saída para o transatlântico pareceu razoável e até entusiasmante. Nunca tinha estado num catamaran. Chegámos de mãnha ao porto. O aprovisionamento e proteção para uma viagem que não se quer com mais de 5 dias é fácil. Numa hora estávamos prontos para seguir. Eu e o capitão num, e a Janet e um outro capitão inglês noutro. Não fomos lado a lado mas fomo-nos acompanhando por sms. Caia a noite e o mar revelava-se quanto mais nos afastávamos da costa. O movimento de um cataram é diferente de o de um monocasco (veleiro normal). Mais estável, mas ao mesmo tempo mais “bruto” e menos orgânico com as ondas. Eu não estava habituada de todo. Comecei por ficar ligeiramente enjoada, mas como nunca tinha passado mal num barco, não fiz grande drama. As horas passavam e quando mais entrávamos em alto mar, pior eu ficava. Comecei a vomitar levemente e quase achava que ficaria melhor dai a uma horinha. Mas o barco avançava e eu estava ficar assustada com aquela sensação que não conseguia suportar de todo. Começou a ficar tão forte que estava já a arrastar-me para a casa de banho de 15 em 15 min. Estava em desespero total. O capitão ao aperceber-se foi absolutamente cavalheiro e mandou-me para a cama para que pudesse descansar passando ele a noite em branco. Mas ele não sabia que nem na cama eu melhorava. Passadas 24h, o meu corpo estava tão debilitado que não me conseguia manter em pé, dormir ou descansar de nenhuma forma. Só conseguia chorar de tão agonizante que tudo aquilo me parecia. Foi quando numa das idas à casa de banho que num movimento ainda mais brusco do barco bati com a cabeça quase perdendo os sentidos que me lembrei da minha regra das 48h. Tenho para mim que seja o que for de muito mal me aconteça, quer fisicamente quer emocionalmente, não deixo que a situação me consuma por mais de 48h. Nunca! É preciso reagir à adversidade para a poder ultrapassar. Assim, e porque tinha o sentido de responsabilidade pelo capitão que também precisava de descansar, agarrei nas minhas últimas forças, cambaliei-me para fora do quarto e forcei-me a subir para a cabine principal. Disfarcei o mais que consegui. Acho que se ele tivesse visto o estado em que eu estava, iria ficar demasiado preocupado e eu não queria isso. Então subi, e rendi-o. Durante mais 8h enquanto ele descansava, fiz a minha primeira vigia à noite, sozinha, com temperaturas negativas e numa zona de muito trafego marítimo (canal inglês). Pelo menos não estávamos a velejar. Teria sido de mais se ainda tivesse que afinar velas estando eu tão debilitada. Lembro-me que me empoleirei na bancada da cozinha na qual conseguia estar de frente para o percurso e seguir os barcos no horizonte. Tinha que sair varias vezes para mudar de curso no piloto automático que só tinha forma de ser controlado lá fora. Entre os vómitos para a pia da cozinha ao meu lado, e as idas lá fora, fui-me puxando para cumprir a tarefa de nos levar a bom porto. Muitas vezes o trafego era tal, que acabei por ficar algumas horas seguidas lá fora para poder controlar melhor a situação. Não estava preparada para o frio, os meus dedos congelaram e não tinha reacção nos mesmos. Tive que arranjar forma de conseguir carregar nos botões que precisava com o cotovelo, testa ou o que houvesse e ainda segurar-me para ficar consciente. Nunca na vida o meu corpo tinha estado numa situação tão limite nem nunca o capitão veio a saber do meu real estado. Nem eu própria estava a tentar provar nada a mim mesma. Apenas senti que com o facto de me estar a forçar a fazer o que tinha que fazer em vez me manter fechada no quarto a achar-me miserável, estava a levar-me a ficar muito melhor. Lembro-me de ter dito a mim mesma “Bárbara Leão, vais agarrar em ti, fazer a tua vigia e deixar o capitão descansar, agora”. E assim foi. 8h depois já estava visivelmente melhor, comecei a conseguir comer normalmente no final desse dia, e não mais enjoei até ao destino final. Parece que depois disso, o meu corpo ganhou-me respeito ou simplesmente aceitou a situação, pois das vezes seguintes que embarquei, nunca mais foi tão pesado nem nunca mais houve tal drama. Hoje em dia se enjoar, simplesmente faço o que o corpo me pedir e não me limito nem alimento muito a sensação. É o que é, e sei que passa. Funciona esta prática para qualquer outra emoção desagradável que encontremos no dia-a-dia.
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